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A crítica ao positivismo: Popper e Kuhn

Karl   Popper

   O positivismo foi, para Popper, mais do que uma filosofia precisa, a matriz dos dogmatismos e das ortodoxias que, em todos os domínios, ele procurou combater. No cerne dessa matriz, Popper descobriu uma concepção secular, a que identifica a ciência como uma atividade estritamente indutiva que, a partir de umas tantas observações e experiências, avança hipóteses e formula leis sobre fenômenos, procedendo depois à sua generalização e verificação. Foi esta concepção que a ingênua espistemologia da Modernidade consagrou como paradigmática no âmbito das ciências naturais e, depois, pretendeu exportar para o conjunto dos saberes e disciplinas. O positivismo de Comte foi, no século XIX, um primeiro – e frustrado – lance desta ambição imperial, que o empirismo lógico do Círculo de Viena voltou, nos anos vinte e trinta do nosso século, a assumir, então através de uma perspectiva que, combinando os clássicos preceitos positivistas com a inspiração do modelo de análise lógica proposto por Russell, deveria permitir não só uma organizada unificação da ciência como a sua blindagem em relação às suas tentações metafísicas. É desta posição que decorrem as famosas distinções entre frases «com» e «sem» sentido, que propiciam um breve, mas intenso, momento de frenesi epistemológico nos anos trinta. Para esta brevidade contribuiu decisivamente Popper, ao recuperar uma esquecida boa idéia de Hume para contestar a imagem da ciência que se encontrava na base das pretensões do positivismo e sustentar que a ciência não é de ordem indutiva mas conjectural – e que, por isso, se deve trocar as exigências da verificabilidade pelas da falsificabilidade. Tal como já fizera David Hume, Popper analisa os fundamentos lógicos do procedimento indutivo concluindo que, por maior que seja o número de observações particulares, não há justificação racional para a sua generalização a todos os casos. Como diz Popper, mesmo que se tenham observado milhares de cisnes brancos, nada nos autoriza a afirmar que «todos os cisnes são brancos» e bastará uma única observação de um único cisne negro para refutar aquela proposição. As inferências indutivas não conferem ao conhecimento nem necessidade lógica nem validade universal, pelo que, para Popper, a ciência não é mais do que um conhecimento conjectural. Em vez de indução, Popper propõe que se fale em conjecturação e, em vez de verificação, em falsificabilidade. A idéia é que a ciência, como conhecimento em geral, é uma atividade que se caracteriza sobretudo pela ousadia imaginativa das suas hipóteses e que estas se devem sempre formular de modo a exporem-se à experiência, que tanto as pode afastar, falsificando-as, como confirmar, corroborando-as. Deste modo, quanto mais uma hipótese afirmar sobre o mundo (isto é, quanto maior for o seu conteúdo empírico) mais se arrisca a ser falsificada; pelo que, se não o for, os seus poderes heurísticos ficam bastante robustecidos. E a conjugação desta exigência de falsificabilidade com a valorização da atividade de conjecturação permite ainda bloquear a ambição positivista de instituir critérios de sentido que excluam ou marginalizam quaisquer domínios de saber, uma vez que o sentido aparece sempre, para Popper, solidário da problematicidade que germina, sem exceção, por todas as áreas do conhecimento e da ação dos homens. Esta perspectiva contém apreciáveis conseqüências num domínio geralmente negligenciado pelos filósofos da ciência, o da política. Foi, sem dúvida, a situação política dos anos trinta que impôs a Popper uma particular atenção a este campo, levando-o a reagir, primeiro ao triunfo do nazismo, depois à irradiação do comunismo. Popper identifica nestas formas de totalitarismo uma concepção claustral da sociedade, que teria tido em Platão, Hegel e Marx os seus ideólogos e no historicismo a sua justificação fundamental. Não um historicismo que, na linha, por exemplo, de Manheim, aponte para a compreensão contextual dos acontecimentos, mas um historicismo cientista que sustenta previsões a partir de supostas leis da História, com base no pressuposto de que a História tem um sentido e que ele se encontra no seu próprio progresso. Popper criticou imenso esta pretensão – na qual via a outra face do que designou por «utopismo» - , sobretudo por ela procurar fazer ciência do que, sendo singular e não recorrente, não pode ser tratado a nível científico. Um exemplo particularmente óbvio dos limites e da «miséria» de um tal historicismo apontou-o Popper (então ao arrepio do «ar dos tempos») no marxismo, salientando o gritante contraste entre o sentido último que o materialismo histórico pretendia evidenciar na História e a linha de acontecimentos que irrompiam na História real. O historicismo cientista contamina a política com dois pressupostos nefastos: o de que a evolução histórica pode ser pensada em termos biológicos e o de que a compreensão dessa evolução se pode fazer em termos indutivistas. São eles que balizam a concepção claustral da sociedade contra a qual Popper tematizou a idéia de uma sociedade aberta. Tomando esta posição de Bergson, mas despojando-a do seu caráter religioso, Popper caracterizou a sociedade fechada por ser mágica (isto é, incapaz de distinguir as leis humanas das naturais) autoritária, estática e tribal, e definiu a sociedade aberta por ser laica (isto é, capaz de distinguir entre o que é e o que não é de ordem convencional ou institucional) crítica, evolutiva e individualista. Mais do que traços factuais, trata-se sobretudo de elementos de dois «tipos-ideais» que permitem configurar não só dois modelos alternativos de sociedade mas também duas orientações bem distintas da ação política. O liberalismo de Popper traduziu-se na aposta sem ambigüidades na superioridade do modelo que a sociedade aberta propõe e que se exibe bem na compreensão que ela viabiliza das patologias totalitárias. Elas decorrem, para Popper – que via nos casos do fascismo e do comunismo exemplos vivos desta tese – , dos conflitos e dos impasses, do desamparo e dos traumas que os complexos processos de diferenciação das sociedades modernas impõem e que suscitam uma intensa nostalgia de uma «totalidade» em que os indivíduos se sintam mais integrados e protegidos. Sobre o fundo de uma concepção evolucionista do conhecimento que situa no vigor da imaginação e na obstinação da crítica o principal traço da racionalidade humana – e, como escreveu um dia, a principal diferença entre a ameba e Einstein - , foi contra os obscuros defeitos desta forma de nostalgia que Popper sempre defendeu a idéia, o projeto, de uma sociedade aberta, que se pode ver como emblema reformista em que procurou sintetizar os seus dois temas mais constantes: o do falibilismo do conhecimento e o da contingência da ação.

Thomas Kuhn

  Thomas Kuhn e Karl Popper devem ser lembrados como dois dos mais destacados pensadores da ciência do século XX. Ambos deram grande contribuição ao pensamento científico e fomentaram um prolongado debate em torno de suas idéias. Popper critica a filosofia do positivismo lógico desenvolvida pelo Círculo de Viena. O Círculo de Viena (tendo como seus maiores representantes Wittgenstein, Carnap e Schlick) defendia o princípio do verificacionismo. Qualquer hipótese, para ser científica, tinha de ser considerada “verificável” (Freire-Maia, 1998, p.83). Não concordando com essa concepção, Popper propõe o que chama de “falseabilidade” ou “falibilismo”. O falseacionismo se aproxima mais de um método no qual toda proposição, para ser científica, deve ser falseável. Esse procedimento é a principal característica da filosofia da ciência popperina. Para Popper, a ciência se desenvolve a partir de revoluções constantes, renovando-se permanentemente. O critério de falseabilidade está associado à idéia de movimentação e rupturas de paradigmas científicos, ao contrário do verificacionismo, que tem como princípio básico a idéia de verdade, portanto algo que se estabiliza em determinado momento; o falseacionismo ou falibilismo não pressupõe uma verdade primeira, mas um enunciado seguido de uma contraprova ou de sua “falseação”. A idéia é a de que a ciência ou o conhecimento científico se desenvolve a partir da busca e da tentativa de encontrar lacunas para falsear uma teoria. Nesse caso, os cientistas desenvolveriam teorias (métodos) cada vez mais consistentes e flexíveis, pois as teorias (32 Ci. Inf., Brasília, v.33, n. 3, p.26-34, set./dez. 2004 Marivalde Moacir Francelin) contariam com o princípio da incerteza e das mudanças de paradigmas. Tais mudanças seriam constantes. Essa concepção de ebulição de novos modelos na construção científica, prevista na filosofia da ciência popperiana, por meio de “refutações”, encontra, no pensamento de outro importante filósofo da ciência, o seu pressuposto de falibilismo ou refutação. Thomas Kuhn, ao contrário de Karl Popper, afirma que a ciência se desenvolve a partir de revoluções científicas que ocorrem em intervalos específicos (geralmente grandes) de tempo. Para Kuhn, a ciência segue um certo tipo de dogmatismo nesses intervalos, pois se comportará e se desenvolverá de acordo com o paradigma vigente. Esse paradigma engloba um conjunto de valores, teorias e métodos que irão influenciar e servir de “modelo” para uma ou várias comunidades científicas. Com as revoluções científicas, os paradigmas se renovam e os “velhos” paradigmas são substituídos depois de um período de crise dentro da própria ciência. As crises se manifestam a partir de controvérsias ao redor de metodologias, teorias, valores e conceitos no campo científico. Quando surgem novas concepções paradigmáticas, dá-se início a um período de transição. Nesse período há muito o que ser feito, pois a ansiedade pelo novo é muito mais forte do que a tentativa de revigorar o velho paradigma, e este acaba por ser o argumento que lhe é mais desfavorável. Conseqüentemente, as grandes revoluções científicas passaram por períodos de transição variados, e, dessa maneira, seguiram seus respectivos períodos de vigência enquanto paradigmas. Pode-se citar como alguns dos representantes dessas revoluções científicas: Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Isaac Newton, Charles Darwin e Albert Einstein. Veja-se que as revoluções científicas, quando tratadas por um espírito científico revolucionário e não-revolucionário, tornam-se extremamente complexas. Kuhn (1979a) lembra que os cientistas são dogmáticos ao avaliarem o próprio desenvolvimento científico. A criatividade tão apregoada como necessária e substancial ao recém-cientista é reduzida a manuais e “cartilhas” científicas no momento de qualquer avaliação. Eis um “espírito” revolucionário desativado ou em inércia. Isso não significa que a criatividade esteja relacionada diretamente às revoluções científicas. Indica que podem haver espíritos criativos e potencialmente revolucionários. E é destes que parte a iniciativa para as revoluções científicas. Em vez do enfoque no evento da descoberta em si, propõe-se a análise de um contexto não como mito (Popper, 1999), mas como um importante agregado à construção científica. Portanto, ter-se-ia um panorama científico que se desenvolve a partir de revoluções e de “espíritos” revolucionários, podendo ocorrer de tempos em tempos (Kuhn, 2001), a todo momento (Popper, 1999), ou das duas maneiras concomitantemente. Questão semelhante foi levantada por Williams (1979), que pergunta a Kuhn e a Popper como saber o que é ciência. A ciência não é planejada estrategicamente. Os cronogramas restringem-se às pesquisas isoladas e, geralmente, correspondem a curtos espaços de tempo. As próprias pesquisas desenvolvem-se independentes umas das outras. Apenas são compartilhadas depois de sua concretização ou a partir de resultados parciais. Dessa maneira, fica difícil saber como se desenvolve a ciência. O cenário científico depende da descrição do cientista. O cientista descreverá o que achar prudente. Essa prudência deturpará e excluirá muitos eventos importantes do trajeto científico. Esses são problemas de processo científico, mas a definição de ciência está no processo ou além dele? Nesse caso, Kuhn e Popper “[...] baseiam suas concepções da estrutura da ciência na sua história ...e a história da ciência não pode suportar essa carga por hora.” Mesmo porque “[...] não sabemos o suficiente para permitir que se erija uma estrutura filosófica sobre uma história” (Williams, 1979, p.61). Isso quer dizer que tanto Popper quanto Kuhn desenvolveram suas teorias de acordo com a visão que têm da ciência, o que não significa que uma ou ambas tenham encontrado ou possuam, segundo Williams (1979), a essência da ciência. O próprio Kuhn (1979b) diz que nem o seu trabalho nem o de Popper são fundamentados em “[...] generalizações que constituem as teorias aceitas na sociologia e psicologia (e na história?) [...]”, porém refere-se às “[...] observações coligidas por historiadores e sociólogos [...]” como “importantes” à filosofia da ciência” (Kuhn, 1979b, p.291). Essa importância parece estar clara no pensamento kuhniano (Kuhn, 2001, p.11-12). As posições defendidas por Popper (1979; 1975) e por Kuhn (1979b; 2001) estão envoltas, segundo os próprios autores, em mal-entendidos. Popper diz que Kuhn não o “entende” ou o “interpreta mal” (Popper, 1979, p.63). Já Kuhn diz a mesma coisa, não de Popper, mas de Lakatos (1979). Lakatos é seguidor e defensor das idéias de Popper (Chalmers, 1994, p.12), chegando a colocá-lo no mesmo nível de David Hume e Immanuel Kant (Lakatos, 1999, p.151). Portanto, Kuhn, ao criticar ou defender-se do que diz Lakatos, está, de certa maneira, estendendo sua argumentação a Popper. Segundo Feyerabend (1991), Lakatos foi o “[...] único filósofo da ciência que aceitou o desafio o de Kuhn [...]” e o combateu em “[...] seu próprio terreno e com as suas próprias armas” (Feyerabend, 1991, p.330). Pensamentos como esses, aparentemente divergentes em certos aspectos, acabam se encontrando e desenvolvendo Ciência, senso comum e revoluções científicas: ressonâncias e paradoxos uma quase complementaridade justamente em dois dos aspectos considerados mais importantes da história do pensamento científico: as crises e as revoluções. Leia um trecho de Kuhn >>>Clique aqui