Razão
A. C. Grayling Birkbeck
College London
"A razão pode lutar corpo a corpo com os terrores, e derrubá-los."
Eurípedes
Os conflitos que mais chamam a atenção nas notícias tendem
ou a ser de natureza política e militar, ou a envolver a luta entre as
pessoas e o ambiente natural quando, nas inundações, nas secas e nas pragas,
este se torna hostil. Mas subjacente a estes, e deles distinta uma vez
que se trata de uma luta cujas proporções são as da própria história,
encontra-se outra luta, uma luta profunda e muito importante porque dá
forma aos destinos humanos de longo prazo. Trata-se da luta das idéias,
exprimindo-se em termos de ideologias, política e enquadramentos conceituais
que determinam convicções e morais. A nossa compreensão da situação humana
e as escolhas que fazemos na gestão das indisciplinadas e difíceis complexidades
da existência social assentam em idéias — geralmente, idéias
sistematizadas em teorias. São as idéias que, em última instância,
arrastam as pessoas para a paz ou a guerra, que dão forma aos sistemas
em que vivem e que determinam o modo como os escassos recursos mundiais
são partilhados. As idéias têm importância e, por conseguinte,
também a tem a questão da razão, através da qual as idéias vivem
ou morrem. Vista a uma certa luz, a razão é o armamento das idéias,
a arma empregue nos conflitos travados entre pontos de vista. Isto indica
que, num certo sentido, a razão é um absoluto que, corretamente utilizado,
pode pôr termo a disputas e guiar-nos até à verdade. Mas a razão, entendida
desta forma, tem sempre inimigos. Um deles é a religião, que afirma que
a revelação, vinda de além-mundo, veicula verdades que não podem ser descobertas
pela investigação humana, situada no seu seio. Outro desses inimigos é
o relativismo, a opinião de que as diferentes verdades, as diferentes
opiniões, as diferentes formas de pensar são todas igualmente válidas,
não existindo um ponto de vista com autoridade, do qual elas possam ser
avaliadas. Os grandes debates ocorridos entre ciência e religião constituem
expressões clássicas deste conflito subjacente que existe entre concepções
concorrentes acerca do lugar e natureza da razão. A maior parte da ciência
e da filosofia encontra-se do lado que afirma que a razão, apesar das
suas imperfeições e falibilidades, fornece uma norma à qual os pontos
de vista concorrentes têm de se submeter para apreciação. Os defensores
da razão são, assim, hostis às opiniões "pós-modernistas" agora em voga,
que afirmam a existência de autoridades mais poderosas do que a razão,
como a raça, a tradição, a natureza ou as entidades sobrenaturais. Pensava-se,
outrora, que as características e valores humanos permaneciam inalterados,
mas a engenharia social e as outras formas de engenharia tornaram-nos
variáveis manipuláveis e, em resultado disso, perdemos as premissas com
base nas quais raciocinávamos acerca dos fins e dos meios. O poder da
tecnologia oferece-nos múltiplas escolhas e, desta forma, usurpa os pontos
de partida fixos do passado; assim, andamos à deriva, indecisos quanto
a valores e objetivos. Nestas circunstâncias, as vozes das sereias fazem-se
ouvir mais alto: acreditemos em deuses, dizem elas, ou poções, ou configurações
planetárias, como forma de nos orientarmos. Ou, na linguagem pós-modernista:
reconheçamos que só há "discursos", cada um tão válido como o anterior.
Poderá ser verdade que a experiência humana é agora mais fragmentada e
assediada por ironias do que outrora foi, e que isso debilita a confiança.
Mas, ainda assim, dizem os defensores da razão, a razão continua a ser,
de longe, o melhor guia na procura do conhecimento, e portanto, apesar
dos seus defeitos e limitações, não nos devemos distanciar dela. Há muitas
pessoas que rejeitam completamente esta opinião. A civilização ocidental
está em crise, dizem, precisamente porque acreditamos na razão. Vivemos
na escravidão de um ideal utópico de sociedade racional, sugerido em primeiro
lugar pelos pensadores iluministas, no século XVIII; mas o resultado,
contrário às esperanças de pessoas como Voltaire, não libertou a humanidade;
antes a escravizou num corporativismo burocrático que cambaleia, incontido
por um desígnio moral, de desastre em desastre. O argumento anti-racionalista
diz mais ou menos o seguinte: Os filósofos iluministas procuraram resgatar
as pessoas da arbitrariedade do poder real ou clerical, substituindo-o
pelo governo da razão. Mas o seu sonho ruiu devido às limitações da própria
razão. O que aconteceu foi apenas um aumento da influência das elites
técnicas. O mundo, em suma, tornou-se um feudo dos gestores. Os detentores
do capital não controlam o capital, os eleitores não controlam a política
— tudo é governado por gestores que, e só eles, sabem como manipular as
complexidades estruturais da sociedade. E os objetivos dos gestores —
lucro, vitórias eleitorais — não obedecem à moral. Este corporativismo
tecnocrata aplicava-se tanto ao antigo Bloco de Leste como se aplica ao
Ocidente. Na verdade, dizem tais críticos, a distinção Leste-Oeste, como
a distinção entre Esquerda e Direita, não é sequer uma distinção verdadeira,
mas uma ficção da estratégia gestora através da qual a Era da Razão se
sustenta a si mesma. Basta elaborar uma lista dos problemas da civilização
contemporânea para que qualquer pessoa consiga apresentar argumentos reveladores.
Os críticos da razão fazem-no bastante eloqüentemente. Os políticos,
lembram-nos eles, conseguem safar-se dizendo disparates literais porque
o que conta é a forma, e não o conteúdo, do que dizem. Os governos prosseguem
com despudor no poder, apesar dos seus insucessos, porque deixou de vigorar
o conceito de responsabilidade. A televisão, a publicidade e o culto de
heróis artificiais, como é o caso das estrelas de telenovelas, cegam as
pessoas para a situação difícil que o mundo vive. Estes fenômenos,
assim como muitos outros, constituem sintomas de grande mal-estar. Piores
ainda são exemplos como o comércio de armas, incentivado por governos
que proferem declarações pias sobre paz e liberdade, mas que subvertem
ambas ao participarem naquilo que não é senão contrabando legal de armas.
E isto é apenas uma parte da história, na qual prospera a autoridade militar
estabelecida — ébria de obsessões com a gestão e a tecnologia — e muitos
locais do mundo se encontram perpetuamente envolvidos em guerras. Embora
este compêndio de problemas não contenha novidades, falar deles serve
para nos manter alerta. Contudo, a culpa dos problemas mundiais não pode
ser atribuída a um conceito — e muito menos ao conceito de razão, preferido
do Iluminismo —, mas a pessoas. A razão é meramente um instrumento que,
corretamente utilizado, ajuda as pessoas a fazer inferências a partir
de determinadas premissas, sem inconsistências. O importante é escolher
premissas sólidas — e essa é uma responsabilidade exclusivamente humana.
Atribuir culpa à "razão" é tão desprovido de sentido como atribuir culpa
à "memória" ou à "percepção". Foi o racismo dos nazis, e não a lógica
que eles aplicaram na expressão real do seu ódio, que causou o Holocausto.
Pretendem os críticos afirmar que o uso da razão é mau, sem quaisquer
reservas? Imagino-os a utilizar os seus processadores de texto, a atender
o telefone, a tomar antibióticos para a garganta inflamada, a acionar
interruptores para conseguir calor e luz, ao cair da noite fria. Estes
produtos da razão são todos desprezíveis? A confusão que grassa no pensamento
dos críticos da razão revela-se quando analisamos a alternativa que propõem.
Oferecem-nos uma lista de virtudes, que deveríamos colocar no lugar da
razão; uma destas listas inclui o seguinte: "espírito, desejo, fé, emoção,
intuição, vontade, experiência." Reparamos imediatamente que todas elas,
com exceção da última, a não serem governadas pela razão, são exatamente
aquilo que alimenta o fanatismo e as guerras santas. Aqui jaz a pobreza
da perspectiva anti-racionalista.
A. C. Grayling
Tradução: de Maria de Fátima St. Aubyn
Retirado de O Significado das Coisas (Lisboa: Gradiva, 2004)
A Crise da Razão
O filósofo Hegel (séc. XIX), um racionalista, que disse
que a realidade é racionalidade, também disse sobre a Razão:
1. A razão é cumulativa: na batalha interna entre teses
e antíteses, a razão vai sendo enriquecida, vai acumulando
conhecimentos cada vez maiores sobre si mesma, tanto conhecimento da racionalidade
do real (razão objetiva) quanto como conhecimento da capacidade
racional para o conhecimento (razão subjetiva).
2. A razão traz esperança: a razão possui força
para não se destruir a si mesma em suas contradições
internas; ao contrário, supera cada uma delas e chega a uma síntese
harmoniosa de todos os momentos que constituíram a sua história.
Vários filósofos franceses, como Michel Foucault,
Jacques Derrida e Giles Delleuze, ao estudarem a história da filosofia,
das ciências da sociedade, das artes e das técnicas, disseram
que, sem dúvida, a razão é histórica - isto
é, muda temporalmente -, mas essa história não é
cumulativa, evolutiva, progressiva e contínua. Pelo contrário,
é descontínua, se realiza por saltos e cada estrutura nova
da razão possui um sentido próprio, válido apenas
para ela.
Dizem eles que uma teoria (filosófica ou científica)
ou uma prática (ética, política, artística)
são novas justamente quando rompem as concepções
anteriores e as substituem por outras completamente diferentes, não
sendo possível falar numa continuidade progressiva entre elas,
pois são tão diferentes que não como nem por que
compará-las e julgar uma delas mais atrasada e a outra mais adiantada.
Assim, por exemplo, a teoria da relatividade, elaborada por
Einstein, não é continuação evoluída
e melhorada da física clássica, formulada por Galileu e
Newton, mas é uma outra física, com conceitos, princípios
e procedimentos completamente novos e diferentes. Temos duas físicas
diferentes, cada qual com seu sentido e valor próprios.
Não se pode falar num processo, numa evolução
ou num avanço da razão a cada nova teoria, pois a novidade
significa justamente que se trata de algo novo, tão diferente e
tão outro que será absurdo falar em continuidade e avanço.
Não há como dizer que as idéias e as teorias passadas
são falsas, erradas ou atrasadas: elas simplesmente são
diferentes das atuais porque se baseiam em princípios, interpretações
e conceitos novos.
Uma concepção semelhante foi desenvolvida pelo
norte-americano Thomas Kuhn, filósofo da ciência que estuda
a história do pensamento científico para mostrar que as
ciências não se desenvolvem num processo contínuo
e cumulativo e sim por 'saltos' ou revoluções. Essas revoluções
acontecem quando uma teoria científica entra em crise e acaba sendo
eliminada por outra, organizada de maneira diferente.
Em cada época de sua história, a razão
cria modelos ou paradigmas explicativos para os fenômenos ou para
os objetos do conhecimento, não havendo continuidade nem pontos
comuns entre eles que permitam compará-los. Agora, em lugar de
um processo linear e contínuo da razão, fala-se na invenção
de formas diferentes de racionalidade, de acordo com critérios
que a própria razão cria para si mesma. A razão grega
é diferente da medieval que, por sua vez, é diferente da
renascentista e da moderna. A razão moderna e a iluminista também
são diferentes, assim com a razão hegeliana é diferente
da contemporânea.
Enfim, os filósofos ditos pós-modernos (como,
por exemplo, o francês Lyotard e o norte-americano Rorty) consideram
a filosofia e a ciência práticas culturais típicas
do Ocidente cuja pretensão de realizar a razão ou o conhecimento
racional é infundada e irrealizável. Por quê? Porque
a razão tem a pretensão de ser o conhecimento verdadeiro
da realidade, mas esta não existe, pois não há fatos,
dados ou coisas e sim maneiras de falar ou 'jogos de linguagem' com que
inventamos meios para exprimir o que pensamos e sentimos. Chamamos tais
jogos de racionais ou de verdadeiros simplesmente enquanto funcionam ou
são úteis para nossos fins e os abandonamos por outros quando
deixam de funcionar ou de ser úteis para nossos fins. A prova de
que não há a razão está na multiplicidade
de filosofias contrárias umas às outras e nas mudanças
das teorias científicas. Razão, racionalidade, objetividade,
verdade são mitos ocidentais, 'crenças tribais' como as
de quaisquer outros povos. (Convite à Filosofia, Marilena Chauí). |