O
problema da abordagem naturalista da mente é que parece implausível
— além de minar a convicção religiosa de
que os seres humanos possuem uma alma imortal, criada à imagem
de Deus. Mas se fosse impossível explicar cientificamente os
fenómenos mentais isso significaria que o universo não
seria susceptível de ser inteiramente explicado de um ponto de
vista naturalista, o que violaria a ideia basilar da ciência:
a ideia da completude essencial das explicações naturalistas
do universo — ideia que tão frutuosa tem sido nos últimos
4 séculos, permitindo explicar cada vez mais fenómenos,
incluindo o que antes se considerava serem manifestações
directas da vontade divina. O desafio da filosofia da mente é,
pois, imenso e todas as dificuldades parecem pequenas se pensarmos no
que está em jogo.
Os fenómenos mentais são aparentemente muito diferentes
dos fenómenos físicos, químicos, biológicos,
etc. Por isso, qualquer tentativa de reduzir os fenómenos mentais
a fenómenos biológicos, químicos, etc. é
extremamente difícil. O chamado "problema da mente-corpo"
procura precisamente resolver a questão de saber qual é
exactamente a relação entre os dois tipos de fenómenos.
Pense, por exemplo, numa dor de dentes. O aspecto mental da sua dor
de dentes é o facto de ser algo que o leitor sente; e por mais
que eu lhe diga que a sua dor de dentes é um certo fenómeno
químico ou neurológico no seu cérebro, isto parece
pura e simplesmente falso. Os fenómenos físicos que ocorrem
no seu cérebro são susceptíveis de serem observados
por qualquer pessoa que tenha os instrumentos relevantes à sua
disposição; mas a sua dor de dentes é algo que
só o leitor pode realmente sentir — e observar disposições
de redes neuronais e fenómenos físicos no cérebro
de alguém é algo muito diferente de sentir uma dor de
dentes.
Esta é uma das dificuldades que enfrentamos na filosofia da mente:
a perspectiva típica da ciência, a perspectiva da terceira
pessoa, parece insuficiente no caso dos fenómenos mentais porque
a perspectiva da primeira pessoa parece, neste caso, ser algo de intrínseco
aos fenómenos mentais. "What is it Like to Be a Bat?",
de Thomas Nagel, e "What Mary Didn't Know", de Frank Jackson,
são dois artigos muitíssimo discutidos hoje em dia e que
colocam dificuldades, ou limites, às explicações
científicas dos fenómenos mentais.
Mas há outros problemas. O problema da identidade pessoal é
um dos mais agudos, e já Locke e Hume o tinham enfrentado. Este
problema decorre, uma vez mais, do carácter "diáfano"
da mente. Não é muito difícil ter uma ideia intuitiva
da identidade de objectos materiais, como o nosso corpo, por exemplo.
Mas como explicar a identidade da nossa mente? É óbvio
não apenas que eu estou a escrever este artigo, mas que quem
está a escrever este artigo é alguém que tem uma
história pessoal, uma biografia, determinada. Mas como poderemos
compreender uma biografia e uma identidade de algo imaterial, como a
mente?
No Sentimento de Si António Damásio apresenta várias
teorias científicas que procuram resolver alguns dos problemas
clássicos da filosofia da mente: o que é um fenómeno
mental? O que é a intencionalidade? Como se explica a identidade
pessoal? O que é a consciência? Muitos filósofos
naturalistas podem agora respirar de alívio: algumas das suas
ideias parecem confirmadas pela ciência. São os teólogos
que têm agora de repensar a sua concepção de alma,
pois a concepção tradicional tem, definitivamente, os
dias contados.
Desidério Murcho
Texto publicado na revista "Livros", Junho de 2000
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