A
fonte do poder no oraculo de Delfos
Encontro
de ciência e religião, nesse antigo templo grego, permite que mecanismos
naturais ampliem a magia da realidade.
Por
John R. Hale, Jelle Zeilinga de Boer, Jeffrey P. Chanton e Henry
A. Spiller
O templo de Apolo,
incrustado na fascinante paisagem montanhosa de Delfos, abrigava
o poderoso oráculo e era o mais importante local religioso do antigo
mundo grego. Os generais buscavam conselhos do oráculo a respeito
de estratégias de guerra. Os colonizadores procuravam orientação
antes de suas expedições para a Itália, Espanha e África. Os cidadãos
consultavam-no sobre investimentos e problemas de saúde. As recomendações
do oráculo emergem de forma notável nos mitos. Quando Orestes perguntou-lhe
se deveria vingar a morte de seu pai, assassinado por sua mãe, o
oráculo encorajou-o. Édipo, avisado pelo oráculo de que mataria
o pai e se casaria com a mãe, esforçou-se para evitar este destino,
mas fracassou de forma célebre.
O oráculo de Delfos funcionava em uma área específica, o ádito ou
“área proibida”, no núcleo do templo, e por meio de
uma pessoa específica, a pitonisa, escolhida para falar, como uma
médium possuída, em nome de Apolo, o deus da profecia. A pitonisa
era mulher, algo surpreendente se levarmos em conta a misoginia
grega. E, contrastando com a maioria dos sacerdotes e sacerdotisas
gregas, a pitonisa não herdava sua posição pela nobreza de seus
vínculos familiares. Embora devesse ser natural de Delfos, poderia
ser velha ou jovem, rica ou pobre, bem-educada ou analfabeta. Ela
passava por um longo e intenso período de treinamento, assistida
por uma congregação de mulheres de Delfos, que zelavam pelo eterno
fogo sagrado do templo.
A
Explicação Clássica
A TRADIÇÃO ATRIBUÍA a inspiração profética do poderoso oráculo
a fenômenos geológicos: uma fenda na terra, um vapor que subia
dela e uma fonte de água. Há mais ou menos um século, os estudiosos
rejeitaram esta explicação quando os arqueólogos, escavando
o local, não encontraram qualquer sinal de fenda ou gases. Mas
o antigo testemunho está bastante difundido e provém de várias
fontes: historiadores como Plínio e Diodoro, filósofos como
Platão, os poetas Ésquilo e Cícero, o geógrafo Estrabão, o escritor
e viajante Pausânias e até mesmo um sacerdote de Apolo que serviu
em Delfos, o famoso ensaísta e biógrafo Plutarco.Estrabão (64
a.C.–25 d.C.) escreveu: “Eles dizem que a sede do
oráculo é uma profunda gruta oculta na terra, com uma estreita
abertura por onde sobe um pneuma (gás, vapor, respiração, daí
as nossas palavras “pneumático” e “pneumonia”)
que produz a possessão divina. Um trípode é colocado em cima
desta fenda e, sentada nele, a pitonisa inala o vapor e profetiza”.
Plutarco (46-120 d.C.) deixou um extenso testemunho sobre o
funcionamento do oráculo. Descreveu as relações entre o deus,
a mulher e o gás, comparando Apolo a um músico, a mulher a seu
instrumento e o pneuma ao plectro, com o qual ele a tocava para
fazê-la falar. Plutarco enfatizou que o pneuma era apenas um
elemento que desencadeava o processo. De fato, era o treinamento
prévio e a purificação (que incluía, certamente, a abstinência
sexual e, possivelmente, o jejum) da mulher escolhida que a
tornavam sensível à exposição ao pneuma. Uma pessoa comum poderia
sentir o cheiro do gás sem entrar em transe oracular.
Plutarco também relatou algumas características físicas do pneuma.
Seu cheiro assemelhava-se ao de um delicado perfume. Era emitido,
“como se viesse de uma fonte”, no ádito em que a
pitonisa estava acomodada, mas os sacerdotes e as pessoas que
iam consultá-la podiam, em algumas ocasiões, sentir o aroma
na antecâmara onde aguardavam as respostas. |
 |
A
ÚNICA REPRESENTAÇÃO da sacerdotisa, ou pitonisa,
de Delfos, da época em que o oráculo estava ativo, mostra
a câmara de teto baixo e a pitonisa sentada em um trípode.
Em uma das mãos ela segura um ramo de louro (a árvore
sagrada de Apolo); na outra ela segura uma taça contendo,
provavelmente, água proveniente de uma fonte e que penetrava,
borbulhando, na câmara, trazendo consigo gases que levavam
a um estado de transe. Esta cena mitológica mostra o rei
Egeu de Atenas consultando a primeira pitonisa, Têmis.
A peça foi feita por um oleiro ateniense em torno de 440
a.C. |
|
O pneuma podia
surgir como um gás livre, ou na água. Na época de Plutarco, a emissão
tornara-se fraca e irregular, o que causara, em sua opinião, o enfraquecimento
da influência do oráculo de Delfos nos assuntos do mundo. Ele sugeriu
que, ou a essência vital esgotara-se, ou que intensas chuvas a diluíram.
Ou, ainda, que um terremoto havia mais de 4 séculos bloqueara, em
parte, esse escoamento. Talvez, considerou, o vapor tivesse encontrado
uma nova passagem. As teorias de Plutarco sobre a redução da emissão
deixam claro que ele localizava sua origem numa rocha abaixo do
templo.
Resumo
No século passado os estudiosos qualificaram como mito a explicação
tradicional segundo a qual vapores que emergiam da terra intoxicavam
e inspiravam as sacerdotisas profetisas de Delfos.
Descobertas científicas recentes mostram que esta explicação
era, de fato, extraordinariamente precisa.
Os autores identificaram, em particular, duas falhas geológicas
que se cruzavam precisamente sob o local do oráculo.
Ricas camadas petroquímicas nas formações calcárias da região
produziam, provavelmente, etileno, gás que leva a um estado
de transe e que pode ter ascendido através das fissuras criadas
pelas falhas. |
Um viajante da geração seguinte, Pausânias, ecoa a menção de
Plutarco ao surgimento do pneuma na água. Pausânias relata ter
visto, no declive acima do templo, uma fonte de água chamada
Kassotis, que, segundo ouvira, mergulhava no subsolo e emergia
novamente no ádito, onde suas águas tornavam as mulheres proféticas.
Plutarco e outras fontes assinalam que, durante as sessões normais,
a mulher que servia como pitonisa estava em um transe suave.
Ela era capaz de sentar-se aprumada no trípode e passar um tempo
razoável ali (embora, se a fila de pessoas que pediam conselhos
fosse longa, uma segunda e até mesmo uma terceira pitonisa pudessem
substituí-la). Ela podia ouvir as questões e respondê-las de
forma inteligível. Durante as sessões oraculares, a pitonisa
falava com voz alterada e tendia a cantar as respostas, permitindo-se
jogos de palavras e trocadilhos. Após a sessão, segundo Plutarco,
ela se parecia com um corredor após uma maratona, ou uma dançarina
ao final de uma dança extática. |
Em uma ocasião, que ou o próprio Plutarco ou um de seus colegas
testemunharam, as autoridades do templo forçaram a pitonisa a profetizar
em um dia não propício, para agradar os membros de uma importante
comitiva. Relutante, ela se dirigiu para o ádito subterrâneo e foi
imediatamente tomada por um espírito poderoso e maligno. Neste estado
de possessão, em vez de falar ou cantar como fazia, gemeu e gritou,
jogou-se ao chão violentamente e precipitou-se em direção às portas,
onde desmaiou. Os sacerdotes e as pessoas que a consultavam, assustados,
inicialmente fugiram. Mas voltaram mais tarde e a recolheram. Alguns
dias depois ela morreu.

A Nova
Tradição
GERAÇÕES DE ESTUDIOSOS aceitaram essas explicações. Mas, por volta
de 1900, um jovem especialista em temas do mundo clássico, o inglês
Adolphe Paul Oppé, visitou as escavações conduzidas por arqueólogos
franceses em Delfos. Não encontrou qualquer fenda, nem conseguiu
obter informação sobre gases, publicando um influente artigo onde
apresentava três teses críticas. Em primeiro lugar, nenhuma fenda
ou emissão gasosa jamais existira no templo em Delfos. Em segundo,
ainda que tivesse existido, nenhum gás natural poderia produzir
um estado que se assemelhasse a uma possessão espiritual. Em terceiro,
o relato de Plutarco sobre a pitonisa que passara por um violento
frenesi, e morrera logo depois, era inconsistente com a descrição
costumeira de uma pitonisa sentada em um trípode, cantando as suas
profecias. Oppé concluiu que todo o antigo testemunho podia ser
invalidado.
A
demolidora investida de Oppé tomou o mundo acadêmico de assalto.
Suas opiniões foram expressas de forma tão vigorosa que passou
a ser a nova ortodoxia. A ausência da ampla abertura que os
arqueólogos franceses esperavam encontrar parecia provar os
seus argumentos. Um apoio adicional para a teoria de Oppé surgiu
em 1950, quando o arqueólogo francês Pierre Amandry acrescentou
que apenas uma área vulcânica, algo que Delfos não era, poderia
ter produzido um gás como aquele descrito pelos autores clássicos.
O caso parecia encerrado. A tradição original dos autores gregos
e latinos sobrevivia somente nos livros populares e nas palavras
dos guias locais. Na opinião de Oppé, esses autores seriam a
fonte do mito da fenda e do vapor.
|
 |
EXPERIMENTOS
COM ANESTESIA
realizados nos anos 50 por
Isabella Herb (em pé) revelaramse
cruciais para resolver o mistério a respeito de qual gás
poderia ter sido emitido sob o templo em Delfos. Herb
e seus colegas descobriram que baixas concentrações de
etileno podem
produzir um estado de transe. |
|
A situação
mudou nos anos 80, quando um projeto de desenvolvimento das Nações
Unidas realizou uma pesquisa na Grécia sobre as falhas ativas (aquelas
ao longo das quais terremotos foram gerados durante as últimas centenas
de anos). Na qualidade de membro da equipe de pesquisa, um de nós
(o geólogo de Boer) observou superfícies de falhas expostas a leste
e a oeste do santuário. Segundo sua interpretação, essas superfícies
marcariam a linha de uma falha que corria ao longo da inclinação
ao sul do Monte Parnaso e sob o local em que ficava o oráculo. Ciente
da tradição clássica, mas desconhecendo o ceticismo e a demolidora
investida moderna, ele não deu maior importância à sua observação.
Mais de dez anos depois, de Boer encontrou outro de nós (o arqueólogo
Hale) em um sítio arqueológico em Portugal, onde Hale investigava
a opinião geológica de de Boer sobre a evidência de um terremoto
que teria causado estragos em uma vila romana. Enquanto bebiam uma
garrafa de vinho, de Boer mencionou que havia observado a falha
sob o templo em Delfos. Hale, que aprendera a teoria consagrada
enquanto estudante, discordou. Mas, durante a animada conversa que
se seguiu, de Boer convenceu-o com sua descrição da falha, com uma
explicação de como as falhas poderiam conduzir os gases até a superfície
e suas referências aos autores clássicos. Compreendendo a importância
da observação para a interpretação das antigas explicações, os dois
decidiram formar uma equipe para explorar melhor o local.
Novas Interpretações
DURANTE A NOSSA PRIMEIRA pesquisa de campo, em 1996, realizamos
investigações geológicas e examinamos as fundações do templo, expostas
pelos arqueólogos franceses. O templo apresentava algumas características
anômalas que exigiam uma interpretação especial de suas funções,
mesmo que os relatos de Plutarco e outros não tivessem sido preservados.
Em primeiro lugar, a parte interna do santuário é mais baixa, situando-se
entre 2 e 4 metros abaixo do nível do solo circundante. Em segundo
lugar, é assimétrica: uma interrupção na colunata interna alojava
uma estrutura hoje desaparecida. Em terceiro lugar, construída diretamente
sobre as fundações da área interrompida, há um elaborado escoadouro
para água de fonte, junto com outras passagens subterrâneas. Assim,
o templo de Apolo parecia planejado mais para conter um pedaço particular
de terreno que incluía uma fonte do que para proporcionar, conforme
a função normal de um templo, uma morada à imagem do deus.
|
DUAS
FALHAS GEOLÓGICAS cruzavam-se sob o Templo de
Apolo em Delfos. Esta intersecção (acima e detalhes na
pág. oposta) tornava a rocha mais permeável e abria caminhos
(imagem de corte) ao longo dos quais tanto a água subterrânea
como os gases podiam ascender. A atividade tectônica aquecia
a rocha adjacente |
às
falhas a temperaturas suficientemente elevadas para vaporizar
alguns de seus elementos petroquímicos. Esses vapores
gasosos passavam pelas fissuras criadas pelas falhas e
chegavam até a pequena câmara fechada que estava de 2
a 4 metros abaixo do nível do solo do templo, câmara onde
o oráculo profetizava |
|
 |
Durante
esta primeira exploração, localizamos a linha leste-oeste
da falha principal, chamada de falha de Delfos, que de Boer
havia observado anteriormente. Mais tarde descobrimos a superfície
exposta de uma segunda falha em uma ribanceira acima do templo.
Esta segunda linha, que chamamos de falha de Kerna, ia do
noroeste para o sudeste, cruzando a falha de Delfos no local
do oráculo. Uma linha de fontes que atravessava o santuário
e cruzava o templo marcava a localização da falha de Kerna
abaixo da antiga plataforma e das ruínas de pedras.
Neste mesmo ano, a equipe arqueológica e geológica de Michael
D. Higgins e Reynold Higgins (pai e filho) publicou um livro
sugerindo que estávamos na pista certa. Em seu Geological
Companion to Greece and the Aegean, assinalam que a linha
de fontes sugeria de fato a presença de uma “falha abrupta”
indo de noroeste para sudeste através do santuário. Eles apontavam
também que não havia nenhuma razão geológica para rejeitar
a antiga tradição.
Higgins e Higgins teorizaram que o gás emitido poderia conter
dióxido de carbono. Na década anterior, outra equipe científica
detectara uma emissão semelhante em outro templo de Apolo,
em Hierápolis (atual Parnukkale) na Ásia Menor (atual Turquia
e sede de ruínas de várias e extensas cidades gregas). Seguindo
a pista de Estrabão, os pesquisadores modernos descobriram
que o templo de Apolo em Hierápolis fora deliberadamente construído
sobre uma abertura de gases tóxicos que, após concluído o
templo, emergiam a partir de uma gruta nas fundações da construção.
|
O templo
em Hierápolis não era um lugar de profecia e o dióxido de carbono
não era exatamente um tóxico inebriante, utilizado, isso sim,
para tirar a vida dos animais destinados aos sacrifícios, de
pássaros a touros. Ainda hoje o gás, emitido irregularmente,
mata os pássaros que pousam sobre a cerca de arame farpado construída
para manter as pessoas afastadas. Outros templos de Apolo na
Turquia, entretanto, eram oraculares e foram construídos sobre
fontes ativas, como os templos em Didyma e Claros. Parecia surgir
assim uma conexão evidente entre os templos de Apolo e os locais
de atividade geológica. |
 |
O Gás
Perfeito
EMBORA AS FALHAS RECÉM-DESCOBERTAS em Delfos indicassem que os gases
e a água da fonte pudessem ter alcançado a superfície através das
rachaduras abaixo do templo criadas pelas falhas, não explicavam
a produção dos próprios gases. De Boer, entretanto, observara depósitos
de travertino, fluxos de calcita, depositados pela água da fonte,
revestindo os declives acima do templo e até mesmo uma antiga parede
de arrimo. Esses fluxos sugeriram a de Boer que a água subia, através
de profundas camadas de pedra calcária, para a superfície, onde
depositava mineralizações de calcita (um fenômeno observado também
em Hierápolis, na Turquia). Um exame dos estudos geológicos gregos
sobre o Monte Parnaso revelou que havia, entre as formações rochosas
cretáceas nas proximidades do templo, camadas de calcário betuminoso
que continham a elevada taxa de 20% de uma matéria petroquímica.
De Boer percebeu que um sistema tomava forma. As falhas, que estavam
bem evidentes nas inclinações salientes do Monte Parnaso, atravessavam
o calcário betuminoso. O movimento ao longo das falhas criava a
fricção que aquecia o calcário até o ponto em que as substâncias
petroquímicas vaporizavam. Estas subiam então ao longo da falha
junto com a água da fonte, especialmente nos pontos em que o falhamento
cruzado tornava a rocha mais permeável. Com o passar do tempo, a
obstrução dos espaços no interior da falha pelas crostas de calcita
causava a diminuição das emissões de gás, que só eram restabelecidas
após um novo deslizamento tectônico.
O raciocínio de de Boer parecia estar de acordo com as descobertas
dos arqueólogos franceses no início do século 20, que haviam finalmente
alcançado o leito de rocha sob o ádito poucos anos após a publicação
do artigo de Oppé. Abaixo de um estrato de argila marrom eles encontraram
a rocha que tinha uma “fissura provocada pela ação das águas”.
Acreditamos que essas fissuras foram criadas mais pelas falhas e
deslocamentos que pela água, embora elas possam ter sido, com o
tempo, ampliadas pela água subterrânea; em tentativas anteriores
de alcançar o leito de rocha os arqueólogos franceses observaram
que as cavidades permaneciam cheias de água. Acreditamos ainda que
a rachadura visível no ádito possa ter sido uma fissura que se estendeu
pela camada de argila acima do leito de rocha atravessado pela falha.
Uma meticulosa pesquisa geológica, aliada ao raciocínio, resolveu
um enigma atrás do outro, mas restava ainda a questão de quais gases
teriam ascendido. De Boer sabia que geólogos trabalhando no golfo
do México haviam analisado gases que formavam bolhas ao longo de
falhas submersas. Eles descobriram que falhas ativas nesta área
de calcário betuminoso estavam produzindo gases leves de hidrocarboneto,
como o etano e o metano. O mesmo não poderia ter acontecido em Delfos?
Para investigarmos, pedimos permissão para colher amostras da fonte
de Delfos, bem como amostras da rocha de calcário depositada pelas
antigas fontes. Esperávamos descobrir nesta rocha porosa vestígios
dos gases trazidos à superfície em épocas remotas. Nesse momento,
o químico Chanton juntou-se à equipe. Nas amostras de calcário coletadas
por de Boer e Hale ele encontrou metano e etano, produto da decomposição
do etileno. Chanton foi então para a Grécia coletar amostras das
fontes situadas no local do oráculo e em torno dele. A análise da
fonte de Kerna revelou a presença de metano, etano e etileno. Como
o etileno apresentava um aroma agradável, a presença deste gás parecia
apoiar a descrição de Plutarco de um gás cujo cheiro se assemelhava
ao de um sofisticado perfume.
Para ajudar a interpretar os possíveis efeitos que tais gases produziriam
em pessoas alojadas em um espaço restrito como o ádito, o toxicólogo
Spiller integrou o projeto. Seu trabalho com os adolescentes usuários
de drogas que ficavam agitados ao inalar substâncias como cola e
tíner, muitas das quais contêm gases leves de hidrocarboneto, revelava
uma série de paralelos com o relato do estado de transe experimentado
pela pitonisa.

Spiller descobriu ainda outros paralelos nos experimentos sobre
as propriedades anestésicas do etileno realizados há cinqüenta anos
por Isabella Herb, pioneira americana em anestesia. Ela descobriu
que uma mistura com 20% de etileno produzia um estado de inconsciência
e que concentrações mais baixas induziam um estado de transe. Na
maioria dos casos, o transe era benigno: o paciente permanecia consciente,
era capaz de se sentar e de responder perguntas, experimentava sensações
físicas e euforia e tinha amnésia após retirado o gás. Ocasionalmente,
porém, Herb observou reações violentas: o paciente emitia gritos
enfurecidos e incoerentes e realizava movimentos descontrolados.
Se o paciente tivesse vomitado durante este estado de exaltação,
e parte do vômito penetrado em seus pulmões, a conseqüência seria,
inevitavelmente, pneumonia e morte. Assim, de acordo com a análise
de Spiller, a inalação do etileno poderia explicar as várias descrições
dadas aos efeitos do pneuma em Delfos: seu aroma agradável e as
diversas influências exercidas sobre as pessoas, inclusive o seu
potencial letal.
Uma
Inspiração Inesperada
HÁ 2 MIL ANOS PLUTARCO estava interessado em reconciliar religião
e ciência. Na qualidade de sacerdote de Apolo, teve de responder
aos religiosos conservadores, que discordavam da noção de que um
deus usasse um incerto gás natural para realizar um milagre. Por
que não entrar no corpo da mulher diretamente? Plutarco acreditava
que os deuses precisavam confiar nas substâncias deste mundo corrupto
e transitório para realizar suas tarefas. Embora um deus, Apolo
era obrigado a comunicar suas profecias por meio das vozes dos mortais
e, para isso, precisava inspirá-los com estímulos que pertenciam
ao mundo natural. As meticulosas observações de Plutarco e o seu
relato sobre as emissões gasosas em Delfos revelam que os antigos
não tentavam excluir a investigação científica da compreensão religiosa.
A principal lição que extraímos do projeto oráculo de Delfos não
é a surrada mensagem de que a ciência moderna pode esclarecer curiosidades
antigas. Mais importante, talvez, é compreender que temos muito
a ganhar se abordarmos os problemas com a mente aberta e com enfoque
interdisciplinar, como o preferido pelos gregos.
OS
AUTORES
|
JOHN HALE, JELLE DE BOER, JEFF CHANTON E HENRY SPILLER
formaram uma equipe interdisciplinar para investigar o oráculo
de Delfos. Hale, arqueólogo da University of Louisville, escreveu
anteriormente dois artigos para a Scientific American. De
Boer é professor de geologia da Wesleyan University. Chanton
é químico e leciona no departamento de oceanografia da Florida
State University. O toxicólogo Spiller dirige o Kentucky Regional
Poison Center.
|
PARA
CONHECER MAIS
|
The
Delphic Oracle. H. W. Parke e D. E. W. Wormell. Basil
Blackwell, 1956.
Plutarch’s Moralia. Vol. 5. Loeb Classical
Library. 6ª edição. Harvard University Press, 1992.
A Geological Companion to Greece and the Aegean.
Michael Denis Higgins e Reynold Higgins. Cornell University
Press, 1996.
New Evidence for the Geological Origins of the Ancient
Delphic Oracle (Greece). J. Z. de Boer, J. R. Hale
e J. Chanton em Geology, Vol. 29, número 8, págs. 707-711;
2001.
The Delphic Oracle: A Multidisciplinary Defense of
the Gaseous Vent Theory. Henry A. Spiller, John R.
Hale, Jelle Z. de Boer em Journal of Clinical Toxicology,
Vol. 40, número 2, págs. 189-196; 2002.
|
|