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Meditações: O que disse Olímpio Pimenta em
"Razão e conhecimento em Descartes e Nietzsche"

      "Uma vez que a dúvida é a principal arma do ceticismo, Descartes decide instaurar como ponto de partida de todo o seu empreendimento a especulação pautada por ela. Não se trata, no caso, de uma dúvida decorrente de qualquer experiência particular, mas sim de uma dúvida generalizada e regrada pelo método, para a qual qualquer aspecto passível de incereza numa proposição decide já pela inaceitabilidade desta como um todo. Tudo aquilo que pudesse ser tomado como certo deveria ser submetido, assim, a uma investigação condicionada segundo estes parâmetros.
      O desenvolvimento aplicado do princípio da dúvida se dá em três etapas ou graus sucessivos. Inicialmente é posto em causa o valor do depoimento dos sentidos como fonte de conhecimento certo. A constatação é fácil de se entender, uma vez que é bastante comum que alguém se engane ao tomar como um fato algo controvertdo: um fenômeno que aparece como sendo verificável pode decorrer de uma ilusão ou desvio de percepção. Além disso, a turbação dos sentidos, pelos negros vapores da bile ou por qualquer outro agente alucinatório pode provocar num indivíduo a impressão da existência de estados de coisas ou de acontecimentos que não têm qualquer densidade empírica. Todavia, não obstante tais possibilidades, pode-se tomar certas percepções elementares como consensuais, o que suspende a validade da dúvida, calcada apenas na impugnação dos sentidos. Que eu esteja aqui sentado ... que essas mãos e corpo sejam meus são proposições que até aqui resistem à dúvida, pois nada têm de abusivo ou pouco convincente para a grande maioria dos homens. O limite para duvidar dos senrtidos é, assim, fixado em estrita fidelidade ao princípio postulado.
      A próxima instância da qual Descartes extrai elementos para duvidar é o sonho enquanto representação de estados de coisas que podem ou não estar efetivamente ocorrendo. De acordo com isso, pode-se sonhar com atos efetuados em circunstâncias muito diferentes daqueles que se verificam no momento mesmo em que o sonho se desenvolve. Tal constatação impóe consigo a hipótese de que a vigília e o sono durante o qual se sonha são estados cuja precedência de um sobre o outro é pouco clara, o que impossibilita que qualquer um se certifique da validade de suas afirmaçãoes, mesmo sendo estas muito simples como as citadas há pouco. Entretano, prossegue Descartes, existe determinado tipo de proposição cuja validade ultrapassa as circunstâncias do sono e da vigília. A aceitação da demonstrabilidade das equações da matemática prescinde de uma diferença entre os dois estados: estar plenamente desperto ou profundamente adormecido não afeta a certeza de que, por exemplo, 3 mais 2 somam 5, e tal operação só se efetua com esse resultao, indiferentemente de sua encunciação se dar dentro de um sonho ou durante um exercício em vigília. Mediante tal consideração é fixado um segundo limite para a ação da dúvida.
      Resta ainda, apesar disso, um última possibilidade para a generalização radical da dúvida. Mesmo as mais simples certezas matemáticas podem ser suspensas se se considerar que há uma fonte de tudo o que foi criado que se diverte em enganar sistematicamente suas criaturas a respeito de toda e qualquer coisa que elas tomem como indubitáveis. Tal hipótese afasta qualquer restrição cabível à dúvida, e através dela esta passa a abarcar uma dimensão autenticamente metafísica. Ao se tomar como certo que 3 e 2 somam 5, podemos apresentar garantias epistemológicas para tanto; sob o domínio de um "gêncio maligno" onipotente, todavia, tais garantias são insuficientes para decidir se eu me encontro ou não iludido sempre que efetuo a adição mencionada. A culminância da dúvida metódica com tal hipótese impõe a Descartes a necessidade da obtenção de alguma certeza racional capaz de sustar por si a vigência absoluta dessa mesma dúvida, sob pena do reconhecimento da derrota de qualquer forma de racionalidade pelo ceticismo.
      O termo do processo da dúvida começa a ser esabelecido a partir da seguna meditação, através da formação daquilo que Descartes chamou de primeira certeza metafísica. Sua gênese, demasiado célebre, pode ser descrita em rápidos traços: após afirmar uma profunda perplexidade em face das consequências radicais da dúvida, Descartes entrevê a chance de, à moda de Arquimedes, poder recuperar todo o terreno recém-interditado à reflexão filosófica se dispuser apenas de uma coisa que seja certa e indubitável. Persuadido da completa incerteza de tudo o que pensara até então, o autor, porém, se detém sobre uma constatação que a ele aparece como impossível de refutar: se o grande enganador se compraz em iludi-lo, fazendo com que suas percepções e pensamentos possam ser algo vago e indeterminado, ao menos é certo que ele está sendo enganado. Ora, se há para ele o engano, é necessário que exista algo designado pelo termo "eu" na sentença "eu me engano", isto é, "por mais que me engane [o gênio maligno] não poderá jamais fazer com que eu nada seja enquanto eu pensar ser alguma coisa". A frase eu sou, eu existo é, pois, considerada como necessariamente verdadeira "toda vez que a enuncio ou que a concebo em meu espírito".
      A repercussão das passagens citadas é também notória: ao efetuar o ato de pensar, o sujeito estará certificando-se de sua existência e tal se constitui, para a investigação metafísica cartesiana, em sua pedra angular, suficiente para que prossiga sobre si a elaboração de toda a pesquisa subsequente. No contexto de uma ordem das razões evidencia-se claramente o papel deste primeiro passo compreendido pela afirmação de uma certeza: antes de mais nada, trata-se do cumprimento da primeira das condições de possibilidade para a formulação de uma cadeia de relações demonstráveis, capaz de combater de modo convicente o ceticismo. E é assim, efetivamente, que a consciência de si enquanto existente produzida via cogito conduz o sujeito da primeira proposição indubitável à sua primeira consequência lígca: se o ato do pensamento designado pelo cogito é o responsável pela certeza da existência, aquele que existe só pode ser, originariamente, uma coisa pensante, res cogitans. O cogito instaura a certeza da existência para o sujeito: tal existência, poratno, deve levar consigo a marca de sua origem: existência de uma coisa que pensa." Pimenta, Olímpio. Razaõ e conhecimento em Descartes e Nietzsche. Editora UFMG. BH, 2000, p. 48 a 52.