A
l m a , c o r p o, r a z ã o e d
e s e j o |
Se
admitirmos com os primeiros filósofos (os pré-socráticos)
que a alma é incorpórea, estamos dentro de uma pesquisa
sobre aquilo que anima o corpo. Há uma exceção
nesta busca: para Demócrito a alma era material, formada por
partículas mínimas e indivisíveis (átomos),
por este fato, Demócrito é considerado o primeiro materialista.
Afora esta exceção, os demais filósofos pensaram
numa entidade que estava desvinculada do corpo material. Alma é
uma palavra que tem sua referência mais explícita pela
primeira vez em Anaxágoras (500 à 428 a.C.), quando ele defendeu
a idéia de que, junto à matéria, existe um princípio ordenador, um nous
ou "inteligência", como causa do movimento. Por isso foi chamado de
o primeiro dualista.
Em grego, alma é psiké, em latim é
anima e em inglês é soul.
Psiché, inicialmente, significa sopro, leve vento: um
sopro (a última expiração) emana das pessoas, quando
elas morrem. Na medida em que a história da filosofia começa
a percorrer o seu caminho, a psiké vai também fazendo
história, e adquirindo características e propriedades,
isso significa que a alma não nasce pronta, ela vai sendo construída
culturalmente. Um corpo sem vida, aquele que perdeu os seus movimentos,
perdeu aquilo que o comandava, perdeu nous, inteligência no último
sopro, psiké. Hoje podemos afirmar que a inteligência (capacidade
de articular idéias, resgatar lembranças e associá-las
a idéias e fatos presentes e fazer projeções para
o futuro em forma de hipóteses e planejamentos) é uma
propriedade da mente (conjunto das funções superiores
da alma) e isso não soa como novidade, como era na Grécia
Antiga. Esta história está tão consolidada em nossa
cultura, que nos parece óbvio que ao nascer, nascemos com braços,
pele, cabeça, coração, alma, etc.
Caminhando um pouco mais na jornada histórica da
alma, chegamos em Platão (427 a 347 a.C.),
que afirmou sobre a alma: "Todo o corpo cujo movimento é
imprimido de fora é inanimado, todo corpo que se move de per
si, do seu interior, é animado: e essa é, precisamente,
a natureza da alma." (Fedon, 245 d). Platão também
afirma sobre a alma em Crátilo 399 d e em Fedon 105 d: "A
alma é, portanto, a causa da vida e por isso é imortal."
Aristóteles foi o primeiro filósofo que sistematizou
a pesquisa sobre a alma. O fruto desta pesquisa foi o livro Tratado
da alma:
"O conhecimento
é uma das coisas que consideramos boas e valiosas, especialmente
esse tipo de conhecimento que se caracteriza por seu rigor e por
dizer respeito a coisas importantes e extraordinárias.
Por ambos os motivos é justo considerarmos a investigação
acerca da alma (psyché) como uma das formas mais elevadas
de conhecimento. Mas o conhecimento sobre a alma também
pode ser considerado de grande valia para o entendimento mais
completo da verdade e especialmente da natureza. Pois a alma é,
por assim dizer, o primeiro princípio dos seres vivos.
Procuramos contemplar e conhecer sua natureza e substância,
bem como as características que lhe são acidentais.
Dentre estas, algumas são consideradas afecções
peculiares à alma, outras pertencem também ao animal
em virtude de ter uma alma. De modo geral e em todos os sentidos,
trata-se de uma das coisas mais difíceis alcançar
um entendimento sobre a alma.
Ora, uma vez que uma investigação deste
tipo é comum a vários outros assuntos, isto é,
uma investigação sobre o que uma coisa é
e sobre qual a sua substância, alguns talvez pensem que
haja um método que possa ser aplicado a tudo isso cuja
substância desejamos conhecer, semelhante à demonstração
das características individuais e acidentais, de tal forma
que é esse método que deveríamos procurar.
Mas se não há um único método comum
para a investigação de particulares; então,
colocar em prática nossa investigação torna-se
ainda mais difícil. Pois temos que compreender em cada
caso qual o método de investigação a ser
utilizado. Mas mesmo se estiver claro que nosso método
de investigação deve ser a demonstração
ou a divisão, ou ainda algum outro, permanecem muitos outros
pontos problemáticos e controvertidos acerca do ponto de
partida de nossa investigação. pois os pontos de
partida de diferentes ciências são diferentes, por
exemplo como ocorre com a ciência dos números e com
geometria plana.
Mas talvez seja necessário distinguir primeiro
a que gênero a alma pertence e no que consiste, quer dizer,
se é uma coisa particular, ou uma substância, ou
se trata de uma quantidade ou qualidade, ou alguma das outras
categorias que distinguimos, ou ainda se se trata de algo em potência
ou em ato. Pois estas distinções são importantes.
Devemos também considerar se tem partes ou não,
bem como se toda alma é do mesmo tipo, e, caso contrário,
se apresentam distinções por espécie ou por
gênero. Pois, até o momento, os que discorrem sobre
a alma e a investigação parecem considerar apenas
a alma humana. Mas devemos ter o cuidado de não esquecer
a questão sobre se é possível dar uma explicação
diferente em cada caso, por exemplo como fazemos com cavalo, cão,
homem e touro, não existindo na realidade o homem em geral,
mas apenas em um sentido secundário. Eis uma questão
que pode ser levantada acerca de qualquer predicado comum. Mas,
se não há vários tipos de almas, mas apenas
partes de almas, então precisamos decidir se devemos em
primeiro lugar investigar a quais partes que são por natureza
distintas umas das outras. E é difícil saber se
devemos investigar primeiro as partes da alma ou suas funções;
por exemplo, primeiro o pensar ou o intelecto, primeiro o perceber
ou a faculdade de percepção, e assim por diante
com todas as outras partes e funções. Mas se for
a função que decidimos examinar primeiramente, alguém
pode ainda questionar se não são os objetos dessas
funções que devemos examinar em primeiro lugar;
por exemplo, o objeto da percepção antes da faculdade
de perceber, ou o objeto do pensamento antes do intelecto.
As afecções da alma também apresentam
uma dificuldade. Não está claro se todas essas afecções
são partes de quem tem a alma ou se alguma delas pertence
à alma ela própria. Devemos decidir isto, embora
não seja fácil. Parece realmente que na maioria
dos casos do que afeta a alma ou do que esta produz, a alma não
pode fazê-lo sem o corpo - sentir raiva, por exemplo, ter
uma expectativa, desejar ou perceber em geral. Mas particularmente
o pensar é uma afecção peculiar da alma.
Entretanto, se isso também não seria possível
sem o corpo. Porém, se há alguma função
ou afecção da alma que lhe seja peculiar, então
a alma poderia ser separada do corpo, enquanto que se não
houver nada que lhe seja peculiar, não seria capaz de existir
separadamente. No caso da alma parece que todas as suas afecções
pertencem a ela em união com o corpo, tais como a raiva,
a timidez, o medo, a piedade, a esperança e até
mesmo a alegria, o amor e o ódio. Pois em todos esses casos
o corpo é afetado de alguma maneira. Uma clara indicação
disso se dá, por vezes, quando, embora sujeitos a aflições
fortes e marcantes, os homens não se desesperam nem se
acovardam, embora em outros casos se alterem por sofrimentos leves
e pequenos, quando o corpo se encontra em estado de exaltação
ou na condição física do homem que sente
raiva. Mas há ainda um sinal mais claro disso, no caso
em que nada de assustador ocorre e no entanto o homem sente as
afecções características de quem tem medo.
Se realmente isto se dá, as afecções da alma
são evidentemente formas envolvendo matéria. Portanto,
assim devem ser definidas: a raiva, por exemplo, como um certo
tipo de movimento em um determinado corpo, ou em alguma parte
ou capacidade desse corpo, produzido por algo de determinado tipo
e com uma finalidade determinada. Estas considerações
tornam a investigação da alma, seja da alma em geral,
seja de um certo tipo de alma, tarefa do filósofo natural.
Mas o filósofo natural e o dialético
dará definições diferentes para cada uma
dessas afecções. Por exemplo, no caso da pergunta
"O que é raiva?", o dialético dirá
que se trata de um desejo de retaliação, o filósofo
natural dirá que se trata de um aquecimento do sangue e
de fluidos quentes do coração. Um dá a matéria,
o outro a forma da explicação. Pois a explicação
é dada pela forma, mas esta para existir necessita da matéria
da coisa particular". |
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