A alma: Sócrates, Platão e Aristóteles
1. Doutrina socrática sobre a alma.
Observação: Sócrates fazia filosofia através
da relação dialógica com seus interlocutores, ele
nada escreveu. Tudo o que se tem escrito sobre a filosofia socrática
foi escrito por Platão, seu aluno; e pelo fato de Platão
nunca ter negado o mestre, a filosofia socrática é platônica.
Segnifica que a filosofia socrática sobre a alma é também
a filosofia platônica.
1.
Dualismo corpo - alma: Para Sócrates a alma se apresenta
como um substância específica imaterial (= espiritual), não
composta (= simples), essencialmente distinta do corpo material.
2. Hirarquia das faculdades: A alma tendo a capacidade
de exercer um comportamento ético é dotada de faculdades
distintas e hierarquizadas: sentido, vontade dotada de liberdade e inteligência.
3. Especificidade da alma: A alma é simples porque
é indivisível, diferente do corpo que se divide em partes,
dotada de movimento próprio e de conhecimento.
4. Imortalidade da alma:
Fedon de Platão:
-
"Quais são (perguntou Sócrates) as coisas que
são susceptíveis de decomposição? A
propósito de que espécie de coisas devemos temer esse
estado, e para que espécie de seres isso não acontece?
Depois disso teremos ainda de examinar qual dos dois é o
caso da alma, para finalmente, conforme o resultado que obtivermos,
haurir daí confiança ou temor com respeito à
nossa alma.
- É
verdade (responde o outro interlocutor, Cebes).
- Não
é, pois, às coisas compostas ou àquelas cuja
natureza é composta, que cabe corresponder precisamente a
composição? Mas, se acontece haver alguma coisa não-composta,
não é só a ela que convém, mais do que
a qualquer outra coisa, o escapar a esse estado de decomposição.
- Sim,
disse Cebes, - é o que penso, assim deve ser.
- Dizei-me
então: Os seres que sempre se conservam imutáveis
e sempre se comportam do mesmo modo, não é altamente
verossímil, que seriam esses precisamente os seres que não
se decompõem? Ao contrário, o que jamais é
o mesmo, o que ora se comporta de um modo, ora de outro, é
ou não é isso, o que chamamos composto?
- Segundo
penso, é.
- Passemos,
agora àquilo para onde nos havia encaminhado a argumentação
precedente! Essa essência de cuja existência falamos
em nossas interrogações e em nossas respostas, diz-se:
comporta-se ela sempre do mesmo modo, mantém a sua identidade,
ou ora se apresenta de um modo, ora de outro? Pode-se admitir que
o igual, o belo, que cada realizador em si - o ser - seja suscetível
de uma mudança qualquer? Ou acaso cada uma dessas realidades
verdadeiras, cuja forma é uma em si e por si, não
se comporta sempre do mesmo modo em sua imutabilidade, sem admitir
jamais, em nenhuma parte e em coisa alguma, a menor alteração?
- É
necessário - disse Cebes - que todas conservem do mesmo modo
a sua identidade, Sócrates!
- E
doutra parte, que dizer dos múltiplos, como homens, cavalos,
vestimentas, ou qualquer outros do mesmo gênero, e que são
iguais ou belos - são sempre os mesmos aspectos às
essências pelo fato de nunca estarem no mesmo estado nem em
relação a si nem em relação aos outros?
- E
dessa maneira - atalhou Cebes - eles nunca se comportam da mesma
forma.
- Assim
pois a uns podes tocar, ver ou perceber por intermédio dos
sentidos; mas quanto aos outros, os seres que conservam sua identidade,
não existe para ti nenhum outro meio de captá-los
senão o pensamento refletido, pois que os seres desse gênero
são invisíveis e subtraídos à visão.
- Nada
mais certo!
- Admitamos,
portanto, que há duas espécies de seres: Uma visível,
outra invisível.
- Admitamos.
- Admitamos,
ainda que os invisíveis conservem sempre sua identidade,
enquanto que com os visíveis tal não se dá.
- Admitamos
também isso.
- Bem,
prossigamos - tornou Sócrates. Não é verdade
que nós somos constituídos de duas coisas, uma das
quais é o corpo e a outra, a alma?
- Com
qual dessas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que
o corpo tem mais semelhança e parentesco?
- Eis
uma coisa que é clara para toda a gente: com a espécie
visível.
- Por
outro lado, que é a alma? Coisa visível, ou coisa
invisível? Não é visível, pelo menos
aos homens, Sócrates!
- Todavia,
quando falamos do que é visível e do que não
o é, fizemo-lo com relação à natureza
humana? Ou talvez creias que foi a propósito de qualquer
outra coisa?
- Foi
a propósito da natureza humana.
- Portanto,
que diremos da alma? Que ela é coisa visível, ou que
não se vê?
- Que
não se vê.
- Vale
dizer, por conseguinte, que ela é uma coisa invisível?
- Sim.
- Logo,
a alma tem com a espécie invisível mais semelhança
do que o corpo, mas este tem, com a espécie visível,
mais semelhança do que a alma?
- Necessariamente,
Sócrates" (Fedon, 78 b- 79 a, trad. J. Paleikat). |
5. O movimento da alma: Para Sócrates a alma é
causadora do movimento, por um poder não recebido de fora. No Fedro,
diálogo platônico sobre a alma, a afirmação
colocada na boca de Sócrates é precisa:
"Cada
corpo movido de fora é inanimado. O corpo movido de dentro é
animado, pois que o movimento é a natureza da alma" (Fedon
245 e).
6.
A alma é imortal, porque incorruptível: Num primeiro
argumento da imortalidade com base em sua natureza, alegou Sócrates,
que, por ser espiritualidade e simples, em tal estado não pode
corromper-se. Em sendo incorruptível, decorre ser imortal. Não
se pode desfazer, nem mesmo após a morte do corpo. Efetivamente,
a simplicidade tem por efeito formal excluir a corrupção,
pois que a corrupção supõe a composição
de partes.
7.
A alma é imortal, porque é superior ao corpo: Marcada
pela atividade vivificadora, hegemonia do querer e maior agilidade de
pensar quando afastada da matéria entorpecedora; mas esta insistência
cabe apenas enquanto dissertação sobre a razão geral
da espiritualidade, ou simplicidade, de onde deriva tal superioridade.
"...quando
a alma e o corpo estão juntos, a natureza manda a um obedecer
e ser escravo e a outro que impede e mande. Pois bem, qual desses
parece assemelhar-se ao que é divino e qual ao que é
mortal? Não achas que somente o que é divino tem capacidade
para mandar e que só o que é mortal é apropriado
para obedecer e ser escravo?
- Penso
como tu.
- A
que se parece a nossa alma?
- É
evidente, Sócrates, que a nossa alma se parece ao que é
divino e nosso corpo ao que é mortal.
- Considere,
pois, querido Cebes, se de tudo que acabamos de dizer, se deduz
necessariamente que nossa alma se assemelha muito ao que é
divino, imortal, capacitada para pensar, ao que tem uma forma única,
simplesmente indissolúvel, sempre igual e sempre parecido
a si mesma. Pelo contrário, o nosso corpo se parece ao que
é humano, mortal, sensível, composto, dissolúvel,
sempre em mudança e jamais semelhante a si mesmo. Há
alguma razão que possamos alegar para destruir estas conclusões
e provar que não é assim?
- Nenhuma,
Sócrates.
- Se
é assim, não convém ao corpo dissolver-se logo
e a alma permanecer sempre indissolúvel, ou em um estado
indiferente?
- Eis
outra verdade.
- Vês,
que depois da morte do nosso homem, sua parte visível, o
corpo, que permanece exposto ante nossos olhos e que chamamos cadáver,
devia dissolver-se. Não sofre, contudo, de imediato não
se dissolve e permanece mesmo intato por algum tempo considerável,
principalmente se o morto era formoso e se encontrava na flor da
idade. Os corpos embalsamados, como no Egito, duram incólumes
por um tempo considerável. Mesmo nos corpos que se corrompem,
conserva-se sempre uma parte, como os ossos, os nervos e algumas
outras partes da natureza que assim se podem dizer imortais.
- Não
é verdade?
- Certíssimo.
- E
agora, a alma, ser invisível que vai para um meio semelhante
a ela mesma, excelente, puro, lugar invisível, ou seja aos
infernos, junto a um Deus cheio de bondade e sabedoria, - uma paragem
a qual espero vá a minha alma, se assim quiser Deus, - uma
tal alma, com tal natureza não faria mais do que abandonar
seu corpo para desvanecer no nada como o crêem a maioria dos
homens? Para isto falta muito, meu amigo Simas e meu querido Cebes.
Note melhor o que ocorre, então: se a alma se retira, pura,
sem nada conservar do corpo, como a que durante a vida não
manteve com ele nenhuma relação voluntária,
para, pelo contrário, fugir dele, recolhendo-se em si mesma,
meditando sempre, ou seja, filosofando bem e aprendendo com isso
a morrer - não representa isto uma preparação
para a morte?
- Sim,
realmente é isso.
- Se
a alma se retira neste estado, vai para um ser semelhante a ela,
divino, imortal, cheio de sabedoria, junto do qual, livre dos seus
erros, da sua ignorância, do seus temores, dos seus amores
desenfreados e de todos os males próprios à natureza
humana, e goza da felicidade" (Fedon, 79 e 81 a). |
8.
Imortal porque se move a si mesma: a seguir o argumento de Platão
apresentado no livro Fedro:
"Toda
a alma é imortal, porque aquilo que se move a si mesmo é
imortal. O que move uma coisa e é por outra movido, anula-se
uma vez terminado o movimento. Somente o que a si mesmo se move,
nunca saindo de si, jamais acabará de mover-se e é
para as demais coisas que se movem, fonte do início do movimento.
O início é algo que não se formou, sendo evidente
que tudo que se forma, forma-se de um princípio. Este principio
de nada proveio, pois, que se proviesse de uma outra coisa, não
seria princípio. Sendo o principio coisa que não se
formou, deve ser também, evidentemente coisa que não
pode ser destruída. Se o princípio pudesse desaparecer,
nem ele mesmo poderia nascer de uma outra coisa, nem dele outra
coisa, porque necessariamente tudo brota do princípio. Concluindo,
pois, o princípio do movimento é o que a si mesmo
se move. Não pode desaparecer nem formar-se, do contrário
o universo, todas as gerações parariam e nunca mais
poderiam ser movidos.
Pois
bem, o que a si próprio se move é imortal. Quem isto
considerar como essência e caráter da alma, não
terá escrúpulo nesta afirmação. Cada
corpo movido de fora é inanimado, pois que o movimento é
a natureza da alma. Se aquilo, que a si mesmo se move, não
é outra coisa senão a alma, necessariamente a alma
será algo que não se formou. E será imortal"
(Fedro, 245).
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9.
A imortalidade decorrente da sua simplicidade: Outra prova da
imortalidade da alma a partir de sua mesma natureza, considera-a indestrutível
por ação a agir sobre ela a partir do exterior. Ponderou
Sócrates que, sendo a alma simples, nenhuma causa consegue destruí-la.
Aseguir o argumento de Platão apresentado no livro República:
"Sócrates:
- Não tem cada coisa o seu mal e seu bem? A oftalmia é
o mal dos olhos; a doença o mal de todo o corpo; a manga, o
mal do trigo; a podridão, o da madeira; a ferrugem, o do ferro
e cobre. Em uma palavra, quase nada há na natureza que não
tenha seu mal e sua doença particular.
Glauco: - É
verdade.
Sócrates:
- Quando o mal ataca uma coisa, a deteriora, acabando por dissolve-la
e aniquilá-la?
Glauco: - Sem
dúvida.
Sócrates:
- assim, pois, cada coisa é destruída pelo mal e pelo
princípio de corrupção que traz em si, de sorte
que, se o mal não força para destruí-la, nada
mais há que o possa fazer, porque o bem não pode produzir
este efeito, nem tão pouco o que não é nem
bem nem mal.
Glauco: - como
poderia ser?
Sócrates:
- Se pois, encontramos na natureza alguma coisa cujo mal inerente
a torna verdadeiramente má, que não pode porém
dissolvê-la e destruí-la , não podemos afirmar
desta coisa que naturalmente não pode perecer?
Glauco: - Parece
muito lógico, que sim.
Sócrates:
- pois não há nada que torne má a alma?
Glauco: - Sim,
certamente; todos os vícios que mencionamos atrás:
a injustiça, a intemperança, a covardia e a ignorância.
Sócrates:
- Haverá um só destes vícios capaz de alterá-la
e destruí-la? Cuidado que não caiamos em erro, supondo
que, quando o injusto e insensato é surpreendido em delito,
seja a injustiça, que é o mal de sua alma, a causa
de sua morte. Eis, ao contrário, como se deve encarar a realidade.
Adverte que a enfermidade, que é o mal do corpo, o aniquila
pouco a pouco, o destrói e reduz ao ponto de não ter
sequer a forma do corpo. E todas as outras coisas de que temos falado
tem seu mal próprio, que se lhes adere e as corrompe e leve
ao extremo de deixarem de ser que antes eram. Não é
verdade?
Glauco: - Sim.
Sócrates:
- Fazendo agora aplicação disto à alma, é
verdade que a injustiça e o outros vícios, em que
se alojando e fixando na alma, a corrompem e emurchecem, até
que, conduzindo-a à morte, a separam do corpo?
Glauco: - De
modo algum: isto não se dá a respeito da alma.
Sócrates:
- Por outro lado, seria absurdo dizer que um mal estranho destruiria
uma substância que seu próprio mal não é
capaz de destruir... Abstenhamo-nos de dizer que nem a febre, nem
nenhuma outra enfermidade, nem a degola, nem a retalhação
do corpo em mil pedaços, nem o que quer que seja, pode dar
a morte à alma, a menos que se faça ver que, pelos
males que o corpo padece nestas circunstâncias, a alma torna-se
mais injusta e ímpia.
E não
toleremos que se diga que a alma ou outra substância perece
pelo mal que sobrevêm a uma substância de natureza diferente
da sua, se não concorre ali o mal que lhe é próprio...
Logo,
é evidente que o que não pode perecer, nem por seu
próprio mal, nem pelo mal alheio, deve necessariamente existir
sempre; e que, se existe sempre, é imortal" (República,
608 e ss.).
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2. Análise da alma por Aristóteles
Observação: Aristoteles inventou o conceito
'análise' que significa 'dividir para compreender'.
Diferentemente de Platão e Sócrates, Aristóteles,
para compreender a alma, teoricamente, a dividiu, como exposto abaixo.
O objetivo principal desta divisão foi identificar no homem a virtude
intelectual agindo sobre a virtude moral de modo que fosse possível
ao homem ser virtuoso nas suas ações na pólis.
Para Platão, para que o cidadão agisse
virtuosamente na pólis, ele teria que conhecer as virtudes que
se encontravam no topós das idéias, ou seja, para agir com
justiça, o homem teria que conhecer o que é justo, para
agir corajosamente teria que conhecer o que é a coragem, etc. Estas
idéias, justiça, coragem, etc, que são reais (porque
são universais, perfeitas, imutáveis e efetivas) geram as
ações virtuosas na pólis quando conhecidas através
da alma. Esta é a doutrina socrático-platônica chamada
de virtude-ciência, ou seja "age justamente
quem conhece a justiça", portanto quem não age justamente
ignora o que seja a justiça. Um exemplo disso é
o livro Críton: Sócrates não foge da prisão
porque ele conhece a verdade: 'a justiça' que é expressa
pela lei que o condenou.
Por outro lado, Aristóteles advoga que, para
que uma pólis feliz possa existir, seus cidadãos têm
que praticar ações virtuosas, desse modo portanto, as virtudes
'justiça' e 'coragem', por exemplo, são atingidas na ação
inteligente dentro da pólis, ou seja, a virtude moral sob a ação
do cálculo inteligente produzido pela virtude intelectual. Esta
é a Ética de Aristóteles chamada de teoria
do justo-meio; uma virtude é o justo-meio entre dois vícios,
por exemplo: a coragem é o justo-meio entre a covardia (vício
por falta) e a temeridade (vício por excesso).
Quando Aristóteles analisa a alma humana, ele a divide
em duas partes: irracional e racional. A parte irracional do ser humano
tem algo que também tem nos vegetais e nos animais. A função
nutritiva temos em comum com os vegetais, a função perceptiva
temos em comum com os animais. Já a parte racional, que nos diferencia
dos outros seres vivos, é dividida em duas: a virtude intelectual
e a virtude moral. A primeira visa a vida contemplativa e a segunda a
vida ativa na polis.
O fim da polis é a felicidade, e, segundo Aristóteles,
ela só é possível se o cidadão fizer bom uso
de sua virtude racional (de sua racionalidade). O cálculo inteligente
no uso da virtude intelectual é fundamental para busca do justo
meio (virtude) na atividade política. É bom atentar para
o fato que, a felicidade em Aristóteles é a felicidade da
pólis, ou seja, o seu bom funcionamento e que em função
disso os cidadãos atingem as suas felicidades individuais. O cidadão
feliz é aquele que atua com as virtudes em benefício da
pólis.
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